Texto foi apresentado na Câmara dos Deputados pouco antes do recesso parlamentar
Com o fim do recesso parlamentar, começa a tramitar na Câmara dos Deputados um novo projeto de lei (PL) que pretende regulamentar o trust – instrumento cada vez mais usado por famílias no planejamento sucessório para os herdeiros. O diferencial desse PL é a definição da questão mais polêmica sobre trust: a incidência de ITBI, ITCMD e Imposto de Renda.
O projeto de lei (nº 145/2022), de autoria do deputado Eduardo Cury (PSDB/SP), foi apresentado dias antes do recesso parlamentar. Um outro PL (nº 4768, de 2020), que também pretende regulamentar o trust, já foi aprovado na Câmara e seguiu para o Senado. Contudo, limita-se a tratar dos efeitos patrimoniais do trust, deixando em aberto a tributação.
A tributação é polêmica porque, conforme explica o advogado tributarista Caio Malpighi, do escritório Mannrich Vasconcelos, “o trust tem o condão de gerar conflito de competência, na medida em que os ativos nele incluídos podem ser tributados pelo Imposto de Renda (União), ITCMD (Estados) ou até pelo ITBI (municípios)”.
Além disso, o Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu que, até junho, o Congresso deve aprovar lei complementar para permitir aos Estados voltar a cobrar ITCMD sobre heranças e doações no exterior (ADO 67). Antes, a exigência era feita com base em lei estadual, o que foi considerado inconstitucional (RE 851108).
O trust é um contrato criado pelo chamado “settlor”, que pode conter fundos de ações, imóveis ou outros bens, aos quais um filho ou sobrinho só teria acesso quando se formar na faculdade, por exemplo. Quem administra os ativos no trust é o “trustee”.
O novo PL estabelece que a lei aplicável ao trust é a indicada no instrumento que o criou e que não compete ao Judiciário processar e julgar o assunto se houver cláusula elegendo um local no exterior. “Exceto se o litígio for de competência exclusiva da Justiça brasileira, por exemplo, relacionado a uma questão tributária”, diz Malpighi.
Conceitos básicos importantes para se saber qual será o tratamento tributário de cada operação relativa ao trust também estão no novo PL. O texto delimita como fato gerador do ITCMD o momento em que o beneficiário em potencial vira um beneficiário efetivo, que seria o momento da doação, segundo Malpighi.
O tributarista também destaca que a lei afasta a incidência do ITCMD quando o instituidor transfere propriedade para o trust, no caso de qualquer pagamento de valores ao beneficiário efetivo ou na transferência de ativo do trust para o instituidor. A alíquota do ITCMD varia de Estado para Estado, mas vai até 8%.
Sobre ITBI, Malpighi afirma que o PL afasta a incidência sobre imóveis colocados no trust. “Mas se o trustee transferir imóveis, na administração do trust, incide ITBI para o município onde o imóvel estiver localizado”, diz. Essa transferência pode ocorrer, cita o advogado, no caso de o instituidor extinguir total ou parcialmente o trust, por exemplo.
Outra possibilidade de incidência do tributo seria na transferência de imóveis do trust (adquirido pelo trustee) ao beneficiário ou ao instituidor. Cada município estabelece sua alíquota, que pode chegar a 3%.
O PL permite a transferência de capital ao trustee, aponta Malpighi, tanto a valor de mercado como pelo valor do custo histórico de aquisição. “Pelo custo histórico não é preciso pagar IR. Mas a valor de mercado, no momento da transferência do bem, deve ser recolhido o IR sobre ganho de capital”, afirma o tributarista. Nesse caso, a alíquota aplicável é definida pela tabela progressiva do IR da pessoa física e vai até 27,5%.
Também pode incidir IR na distribuição em dinheiro pelo trustee ao instituidor ou ao beneficiário, na entrega de bens ou direitos para beneficiário ou instituidor ou na distribuição de resultados, de acordo com Malpighi.
Por abranger questão tributária, o PL 145 trata de lei complementar. Assim, o quórum para aprovação é de maioria absoluta – maior que o do outro PL. Embora o autor da proposta não tenha sido reeleito nas últimas eleições, o texto pode seguir em andamento, segundo Malpighi. Isso porque, com base em recente mudança no regimento interno da Câmara, “as regras sobre arquivamento não têm relação com a reeleição ou não dos deputados”.
Para o advogado Gustavo Godoy, sócio do Terciotti Andrade Gomes Donato Advogados, o texto do PL trará clareza e segurança jurídica, se aprovado. “O que mais me chamou a atenção é que o PL deixa claro que não vai haver incidência do ITCMD na formação do patrimônio e também prevê que a transferência de bens imóveis do settlor para o trust não ficará sujeita ao ITBI”, aponta.
Sobre o ITBI, segundo Godoy, ao descrever as duas hipóteses em que haverá incidência, a regra fica clara. “O PL também diferencia o que é doação [ITCMD] e o que é rendimento [IR]”, diz o especialista. “A aprovação do novo PL deve reduzir bastante o contencioso tributário sanando a falta de regulamentação sobre uma estrutura que é complexa e cada vez mais usada.”
A advogada Clarissa Machado, sócia do Trench Rossi e Watanabe, também vê o PL com bons olhos, seja do ponto de vista do Fisco ou do contribuinte. “O projeto deixa clara a tributação, trazendo segurança jurídica”, diz. “O trust é muito usado lá fora, principalmente para organizar a sucessão previamente dentro de um wealth management”, acrescenta.
Segundo Clarissa, o problema prático é que o PL fala que no momento em que o beneficiário potencial se torna efetivo incide o ITCMD e é preciso colocar a doação na declaração do IR. “Mas, cada vez mais, o trust estabelece condições para que o beneficiário possa ter acesso ao bem, então isso vai carecer de mais regulamentação.” Dependendo do momento da tributação, o valor do ITCMD pode mudar.
A advogada Flávia Gerola, também do Trench, lembra que o PL não tratou da variação cambial. “Quando se remete capital para fora do país e há rendimento, ao se resgatar os valores pode haver ganho de capital pela variação cambial”, afirma.
Fonte: Valor Econômico