Ao antecipar a revogação da alíquota zero, MP 1.202/23 estimula o litígio tributário no Brasil
No dia 28 de dezembro de 2023, os contribuintes foram surpreendidos com a Medida Provisória 1.202/23 que, entre outras medidas, altera a Lei do Perse, antecipando o termo final da redução da alíquota à zero para o IRPJ e contribuições sociais, incidentes sobre a receita das empresas que atuam no setor de eventos. Trata-se de mais uma das medidas do Governo Federal, sob coordenação do Ministro da Economia, Fernando Haddad, para cumprir com o seu objetivo na busca de déficit zero em 2024.
Conforme dados recentemente divulgados pelo IBGE e elaborados pela Associação Brasileira dos Promotores de Eventos (ABRAPE), o setor de eventos é responsável pela geração de 93 mil vagas de empregos formais e 112 mil empregos informais, sendo o principal gerador de empregos no País. Além disso, o setor de eventos é responsável por R$ 291,1 bilhões de faturamento anual, representando 3,8% do PIB brasileiro. Esses dados, por si sós, demonstram a importância do setor no País, sobretudo em relação à geração de novos postos de trabalhos.
Em que pese o importante objetivo de alcançar o déficit zero em 2024, a MP 1.202/23 se traduz em uma medida arrecadatória a custo da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima do contribuinte. Isso implicará, sem sombra de dúvidas, no aumento de litígios tributários no Brasil que, segundo dados do CNJ, em 2019 representavam 75% do PIB brasileiro.
Mas afinal, por qual motivo a medida provisória editada pelo Governo Federal viola a segurança jurídica e a proteção da confiança legítima do contribuinte? O art. 178 do CTN dispõe que isenções fiscais concedidas a prazo certo e sob condição onerosa, não podem ser revogadas a qualquer tempo. Muito embora haja uma diferença técnica entre isenção e redução de alíquota à zero, o resultado prático — que é a exoneração tributária do contribuinte — é basicamente o mesmo.
Expliquemos. A isenção e a redução da alíquota zero são duas espécies de exoneração tributária, sendo tecnicamente institutos diferentes. Enquanto a primeira atua na hipótese de incidência da norma, impedindo que determinada situação seja fato gerador da obrigação tributária, a segunda atua no consequente da norma, impedindo que algum valor a pagar seja gerado.
À luz dos ensinamentos do mestre Sacha Calmon, por ser bem didático, a hipótese de incidência prescrita na norma tributária pode ser representada pela fórmula: Hipótese de Incidência = Fato Gerador – Imunidade – Isenção. Isso significa dizer que, nada obstante a redução da alíquota à zero, ainda continua ocorrendo o fato gerador, previsto na hipótese de incidência, porém o quanto a pagar — no brocardo em latim quantum debeatur — é igual a zero.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em diversos precedentes, tem entendido que o art. 178 do CTN se aplica também a outros benefícios fiscais concedidos por tempo certo e de forma onerosa, o que se encaixa perfeitamente no caso do Perse. Isso porque, a um o benefício foi conferido por prazo de sessenta meses, findando-se tão somente em meados de 2026; e a dois as empresas beneficiárias devem cumprir determinados requisitos para gozarem do benefício, como estarem inscritas no Cadastur.
Esse entendimento, de aplicação do previsto no art. 178 do CTN a outros benefícios fiscais, como no caso da redução da alíquota à zero, consta no julgamento do REsp 1.725.452. O caso julgado pela Primeira Turma do STJ tratava-se de uma lei que antecipou o fim do benefício concedido às empresas varejistas do ramo de informática, por três exercícios financeiros. Anteriormente, o benefício era previsto para o prazo de dez anos.
Para a Ministra Regina Helena Costa, a extinção antecipada da alíquota à zero da Cofins e da contribuição ao PIS viola a segurança jurídica, na medida em que, além do benefício ter prazo certo, a empresa teve que cumprir algumas condições onerosas, tal como promover a inclusão digital de consumidores de baixa renda. Para o gozo do benefício, foi necessário que a empresa fizesse algumas adequações em suas estruturas.
Além disso, registra-se que o Supremo Tribunal Federal (STF), por meio da Súmula 544, consignou que as isenções concedidas por prazo certo, sob condições onerosas, não podem ser suprimidas a qualquer tempo. Fato é que, o art. 178 do CTN concretiza os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima do contribuinte, devendo ser observado não somente no caso das isenções, mas de quaisquer outros benefícios concedidos aos contribuintes sob a mesma sistemática: prazo certo e condição onerosa.
Nessa toada, não pode o Governo Federal, a seu bel-prazer, revogar o benefício concedido antes do termo final previsto na lei que o originou, nem mesmo antecipar o referido prazo. E é isso que a MP 1.202/23 exatamente faz. Revoga o benefício concedido às empresas que atuam no setor de eventos, dispondo que, quanto às contribuições sociais (CSLL, PIS/Pasep e Cofins), a alíquota será restabelecida a partir do dia 1º de abril de 2024 e, quanto ao IRPJ, a alíquota será restabelecida a partir do dia 1º de janeiro de 2025.
Peço licença para usar um brocardo bastante conhecido pelos tributaristas, após o julgamento da “coisa julgada em matéria tributária”. Trata-se, aqui, de uma “aposta” do Governo Federal? Mas a qual custo? Respondo: a custo da segurança jurídica e da proteção legítima do contribuinte, com o estabelecimento de uma agenda arrecadatória, custe o que custar.
Violar a segurança jurídica e a proteção da confiança legítima do contribuinte parece ter virado a regra, cabendo aos contribuintes que se sentirem lesados, infelizmente, buscarem o judiciário. Digo infelizmente, pois os tribunais transformaram-se em verdadeiros “Tribunais Tributários”, o que onera em demasia o Poder Judiciário para tratar sobre matérias que poderiam ser evitadas. Para se chegar à conclusão de que se tornaram verdadeiros “Tribunais Tributários” nem precisa ir muito longe, basta olhar para a pauta das Cortes Superiores. A MP 1.202/23 não somente viola os princípios constitucionais supramencionados, mas também estimula a judicialização do Perse, fazendo com que os contribuintes recorram ao Poder Judiciário para que garantam a manutenção da alíquota à zero até o final do período fixado originariamente pela Lei do Perse.
Fonte: JOTA