Segundo a PGFN, há pelo menos 18 processos judiciais tramitando em todo o Brasil com esse objetivo
Com a crise econômica desencadeada pela pandemia da Covid-19, contribuintes começaram a ajuizar ações no Judiciário para realizar a transação individual de débitos inscritos na dívida ativa em valores inferiores a R$ 15 milhões. Dados da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) mostram que há pelo menos 18 processos judiciais tramitando em todo o Brasil com esse objetivo.
Pelas regras da Portaria PGFN n°9.917/2020, na transação individual, as dívidas com o Fisco devem superar o valor de R$ 15 milhões. A PGFN oferece uma outra modalidade para a negociação de débitos abaixo desse valor, a transação por adesão.
Tributaristas ouvidos pelo JOTA explicam, no entanto, que, na transação individual, o contribuinte consegue sentar à mesa com a PGFN e discutir a proposta, e não apenas aderir às regras previamente estabelecidas pela procuradoria, como no caso da transação por adesão.
Nas ações em andamento no Judiciário, os contribuintes – que saíram derrotados em casos localizados pelo JOTA – alegam que a limitação do valor afronta os princípios constitucionais da legalidade, da isonomia tributária e da capacidade contributiva.
Limitação é extrapolação legal, diz liminar
Em uma decisão pioneira sobre o tema, a 9ª Vara Cível Federal de São Paulo, a pedido da Associação Brasileira dos Contribuintes (ABC), entendeu que a portaria da PGFN, ao limitar o valor para a transação individual, extrapolou a Lei do Contribuinte Legal (Lei 13.988/2020), que versa sobre as situações em que a negociação pode ser realizada. Isso porque a norma não fixa um valor.
“A lei não instituiu nenhum limite financeiro para a transação. A portaria, então, caracterizou uma extrapolação legal, inovando em relação à legislação ordinária”, disse o advogado da associação, Gabriel Prado Souza de Oliveira.
O TRF3, entretanto, suspendeu a decisão em 16 de julho, sob o argumento de que a Lei do Contribuinte Legal concedeu à PGFN “o poder de, discricionariamente, estabelecer os casos em que a transação se dará tão somente por adesão, tendo em foco sempre o alcance dos propósitos do instituto de direito tributário aplicado”.
O TRF3 entendeu também que, em função da complexidade da transação individual, “é mais eficiente disponibilizá-la aos grandes devedores, quando se tem em conta uma maior quantidade de crédito recuperável”.
A ABC apresentou contrarrazões e aguarda nova decisão. De acordo com a associação, como se trata de um mandado de segurança coletivo, se a decisão for favorável a ela, cerca de 3,8 mil associados poderão negociar dívidas que variam hoje de R$ 500 mil a R$ 5 milhões. O processo é o 5017071-40.2020.4.03.6100.
Norma viola isonomia tributária, diz advogado
Já no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) tramita uma ação individual em que uma consultoria da área ambiental também busca realizar a transação individual de um débito abaixo de R$ 15 milhões.
Advogado da empresa, Thales Saldanha Falek argumenta que a definição de um valor mínimo para a negociação individual viola os princípios da isonomia tributária, da legalidade e da capacidade contributiva “ao conferir condições especiais somente às empresas que possuem grande capacidade financeira, afetando drasticamente a concorrência entre os contribuintes e a eficiência econômica do Estado”.
Ele afirma ainda que a norma é contraditória com o próprio objetivo da Lei n. 13.988/2020. “A própria exposição de motivos da lei é clara no sentido de buscar uma maior eficiência na arrecadação de tributos e promover condições que facilitem o recolhimento dos tributos a todos os contribuintes”, afirma. “Não há dúvidas de que a referida modalidade de transação é ferramenta essencial para a continuidade da atividade empresarial de muitos contribuintes, bem como será primordial para a recuperação econômica do país em um cenário pós pandêmico”, defende Falek.
O processo é o 5030010-32.2020.4.04.7100, julgado improcedente em 1ª instância. A empresa apelou e aguarda julgamento no TRF4.
Limitação foi realizada por ato infralegal
Para as tributaristas Rebeca Müller e Mariana Fernandes, do Figueiredo e Velloso Advogados, a limitação do valor para a transação individual foi realizada por ato infralegal e prejudica grande parte dos contribuintes que precisam negociar suas dívidas, principalmente no atual contexto de pandemia.
“A limitação fere sobretudo o princípio da isonomia. É importante que os contribuintes sejam tratados segundo a sua realidade e disponham das mesmas ferramentas para pagamento e negociação de dívidas com o Estado. Assim, o que tem menor dívida também precisa ter acesso à transação individual, à possibilidade de negociar de acordo com a sua realidade contábil. Se há essa limitação, a balança fica desequilibrada”, diz Rebeca.
Na avaliação do tributarista Leonardo Gallotti Olinto, sócio do Daudt, Castro e Gallotti Olinto Advogados, limitar o valor para a transação individual é um contrassenso.
“A criação da ferramenta é um avanço, pois permite um diálogo entre a PGFN e o contribuinte, uma interlocução que não havia antes. Mas, a meu ver, diante do princípio da igualdade, não faz sentido a limitação. Não estamos aqui falando de uma questão meramente arrecadatória, mas sim de resolver a complexidade tributária de forma negociada”, diz.
PGFN: fixação de valores é comum na legislação tributária
A PGFN informou que a solução encontrada para garantir “de forma ótima” os propósitos da Lei do Contribuinte Legal foi, por um lado, permitir a transação individual aos grandes devedores, “em menor número, mas que representam substancial parcela dos créditos recuperáveis inscritos em dívida ativa”. Segundo a procuradoria, em função de sua complexidade, personalização e tempo exigido para a conclusão, essa metodologia “se adequa melhor a um número restrito de casos, em que maiores valores são discutidos”.
De outro lado, a PGFN informa que, “aos demais devedores, em maior número, adota-se como regra geral, e em maior escala, a transação por adesão, em razão da sua simplificação e maior padronização”.
A PGFN disse ainda que a transação individual por iniciativa do contribuinte, além de requerer gastos, como contratação de assessoria jurídica e contábil, demanda negociações individualizadas, o que inclui o agendamento de reuniões para discussão do plano de recuperação fiscal apresentado por ele.
“De outro lado, sem descuidar que não existe direito subjetivo à transação tributária que exige a comunhão de interesses entre contribuinte e Fazenda Pública para sua celebração, é evidente que a fixação de valores de alçada como pressuposto de autorização para as tratativas de transação tributária individual não afronta ao princípio da isonomia, na medida em que trata igualmente aqueles que se encontrem em situação equivalente”, diz o órgão.
A PGFN acrescenta que “a prática de fixação de valores de alçada é comum e recorrente na legislação tributária, a exemplo da fixação de valores mínimos para ajuizamento de execução fiscal ou para inscrição de débitos em dívida ativa”.
Fonte: Jota