O ano de 2020 ficará marcado, entre tantos fatos, como aquele em que o Supremo Tribunal Federal bateu recorde julgamentos de mérito em recursos com repercussão geral reconhecida. Foram julgados 134 REs, o que representa quase 4 vezes mais em relação ao ano anterior, quando foram julgados apenas 33. É o maior número de méritos já julgados desde 2008, conforme as estatísticas do tribunal.
Dos 134 julgados, 125 temas eram leading cases. Em outros 9 processos foi julgado o mérito com reafirmação de jurisprudência. A maioria foi analisada no Plenário Virtual, que teve sua importância ressaltada desde o início da epidemia do coronavírus, com a ampliação das hipóteses de julgamento que permitiu a análise do mérito de recursos. Antes da Covid-19, os ministros usavam a plataforma para deliberar se reconheciam ou não a repercussão geral, mas não adentravam o mérito.
“A solução engenhosa encontrada na gestão de Dias Toffoli garantiu o funcionamento do Supremo pelos próximos vinte anos”, elogia o ministro Gilmar Mendes, referindo-se à possibilidade de os ministros decidirem coletivamente sem se reunir na mesma hora e local.
Foi no Plenário Virtual que o STF fixou que é inconstitucional a incidência previdenciária no salário-maternidade; que a venda de energia elétrica gera ICMS somente ao Estado de destino e ainda que terceirizados não têm direitos equiparados a empregados de empresa pública. Foram muitos os casos pautados em matéria tributária, previdenciária e da administração pública.
Os números são motivos de comemoração, segundo o presidente da corte, ministro Luiz Fux: “Isso, com certeza, demonstra o cumprimento da função paradigmática do STF voltada para vocação de Corte Constitucional formadora de precedentes estáveis, íntegros e coerentes.”
De acordo com o advogado Alonso Freire, professor de Direito Constitucional e ex-assessor de ministro do STF, outro destaque foi o julgamento do recurso que discutiu a responsabilidade civil do Estado por ato praticado por preso foragido. Os ministros fixaram, por maioria, que o Estado só responde por crime de preso foragido se tiver relação direta com a fuga.
Freire afirma que a questão era muito controversa e “merecia um debate mais público e aberto, até para a resposta da corte ser mais bem compreendida pela população”.
“O caso concreto era uma ação por danos morais ajuizada por esposa e filhos de um homem de 45 anos assassinado em casa, enquanto assistia TV, por um detento foragido do sistema prisional. Para a corte, é necessária a demonstração do nexo causal direto entre o momento da fuga e a conduta praticada. E isso é difícil de ser assimilado pela maioria dos brasileiros”, explica.
Outros destaques
O defensor público da União Gustavo de Almeida Ribeiro destacou o julgamento no qual o tribunal fixou que “não se aplica para o reconhecimento dos maus antecedentes o prazo quinquenal de prescrição da reincidência, previsto no artigo 64, I, do Código Penal”.
Adriano Silverio, sócio do ASBZ Advogados, considera que a discussão sobre o salário-maternidade na base de cálculo das contribuições previdenciárias foi um dos temas sensíveis que merecia o julgamento presencial.
Na área tributária, o advogado Gustavo Taparelli, sócio do Abe Giovanini Advogados, considera que o caso mais emblemático em desfavor dos contribuintes foi o que fixou que a incidência de contribuição patronal sobre terço de férias é constitucional.
“Alterou completamente uma decisão a favor das empresas que já estava consolidada nos tribunais. Essa certamente foi a decisão mais representativa da insegurança jurídica oriunda dos tribunais superiores”, afirma.
Silverio concorda e chama a atenção para a importância das sustentações orais presenciais como forma imprescindível de “levar o juiz refletir sobre o seu posicionamento, pedir vistas ou incrementar os seus argumentos no debate”.
Para Taparelli, o Plenário virtual pode ser positivo, “mas seria adequado o desenvolvimento das ferramentas de sistema para propiciar mais discussões e acesso”.
Diversas melhorias foram feitas no ambiente virtual de julgamento ao longo do ano. Para atender aos pedidos da advocacia, a corte também passou a liberar sustentações orais por vídeo, o inteiro teor dos votos e a registrar quais ministros votaram. As abstenções não contam mais como apoio ao voto do relator.
Caminho sem volta?
Outro ponto que não é unânime trata da continuidade desse sistema ampliado depois que a epidemia for controlada e que os ministros puderem voltar a se reunir presencialmente.
Para a criminalista Ludmila Groch, mestre em Direito Penal pela USP e sócia do escritório Lefosse Advogados, a celeridade trazida com o virtual, especialmente durante a epidemia, é muito positiva. Ela destaca a previsibilidade da pauta e facilidade em despachar com os assessores dos ministros. Seu único receio é que esses pontos sirvam de justificativa para prorrogar os julgamentos virtuais depois que passar o período de emergência sanitária de pandemia.
O advogado Saul Tourinho Leal, do escritório Ayres Britto defende que o modelo de julgamento virtual deve ser mantido inclusive depois da epidemia, mas ressalta que o alto número de teses fixadas pode levantar a discussão se houve “todo o investimento de energia intelectual e de temperança da Justiça para fixar essa quantidade”. “É preciso calibrar a quantidade de leading cases apreciados por ano”, afirma Leal, sugerindo uma espécie de teto de casos a serem apreciados.
Alonso Freire também entende que o “tribunal tem prestado um bom serviço ao país resolvendo casos dessa natureza com a celeridade e a reflexão promovidas pelas sessões virtuais”. Para ele, a tendência é a consolidação do modelo.
A presidência do STF ainda não se pronunciou especificamente sobre o tema. Em release divulgado em dezembro pela comunicação da corte, o secretário-geral da presidência, Pedro Felipe de Oliveira Santos, afirmou que estão no planejamento de 2021 “iniciativas em gestão e em tecnologia da informação com a finalidade direta de apoiar a atividade decisória da Presidência e dos ministros”.
A ideia, disse, é buscar a “ampliação das condições para que a jurisdição constitucional possa continuar sendo prestada com qualidade e em tempo razoável”.
Fonte: Conjur