Sentença reconheceu o direito de empresas de não recolher o ICMS sobre a energia produzida e transferida
Em meio ao esgotamento causado pelos debates em torno da revisão da Resolução Normativa da ANEEL REN 482/12, a 6ª Vara da Fazenda Pública de Recife ofereceu um aconchego aos titulares de empreendimentos de micro e mini geração de energia distribuída (GD). Proferida em janeiro deste ano, a sentença reconheceu o direito de um consórcio formado por pequenas e médias empresas de Recife/PE, de não recolher “ICMS sobre a energia produzida e transferida no âmbito do sistema de compensação de energia elétrica, em virtude de essa operação não constituir fato gerador desse tributo” (Processo nº 0030508-91.2020.8.17.2001).
A decisão é irretocável ao acatar a tese de que, na operação de injeção de energia elétrica ao sistema de distribuição por empreendimento de GD, não há fato gerador de ICMS. Tal entendimento, também já defendido pela Segunda Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (Processo n º 0828852-37.2013.8.12.0001) e pela 3ª Vara de Feitos Tributários de Belo Horizonte (Processo nº 5094238-16.2020.8.13.0024), é contrário àquele construído pelos Estados-membros quando da edição do Convênio Confaz nº 16/15, que autoriza a concessão de isenção do pagamento de ICMS. Afinal, é ilógico atribuir isenção tributária a uma operação sobre a qual sequer há incidência do tributo.
A GD no Brasil
Ainda hoje, a matriz energética brasileira é predominantemente hidrelétrica. Porém, seja pelos impactos ambientais, seja pelo risco hidrológico associado, estima-se que, no médio e longo prazo, as hidrelétricas sejam substituídas por outras fontes alternativas de energia. E a maior aposta é a energia solar fotovoltaica.
De acordo a Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar), o Brasil deve atingir até o final de 2021 12,56GW de capacidade instalada de projetos de geração de usinas fotovoltaicas (UFV), um crescimento de 68% em relação à potência atual. E esse crescimento será impulsionado pela GD, que deverá contribuir com um acréscimo de 3,9GW na capacidade instalada – um aumento de 90%, passando de 4,4 GW para 8,3 GW. O baixo impacto ambiental das UFVs, a alta taxa interna de retorno (hoje, quase 40%), dentre outros fatores, são alguns dos motivos que levam consumidores brasileiros a investirem cada vez mais em estruturas de GD.
A GD é a geração de energia pelos próprios consumidores, a partir de fontes renováveis ou cogeração qualificada. Por meio dela, a energia gerada é injetada na rede de distribuição a título de empréstimo gratuito e os consumidores recebem das distribuidoras créditos em suas contas de energia. Nesse modelo de compensação, o consumidor paga à concessionária de distribuição apenas a diferença positiva entre a energia efetivamente consumida e a energia injetada no sistema (descontados os créditos de energia). Um dos pressupostos da GD é não haver comercialização de energia.
A GD pode ocorrer tanto no local de consumo (GD local) quanto em outro (GD remota), podendo, neste caso, ser feita a partir de uma central geradora de um único (autoconsumo remoto) ou de vários consumidores reunidos em consórcios ou cooperativas (geração compartilhada) ou condomínios (EMUCs).
O equívoco do Convênio Confaz nº 16/15
Com o objetivo de atrair investimentos para o segmento de GD, os Estados, por meio do Confaz, aprovaram o Convênio Confaz nº 16/15, que autoriza a concessão de isenção sobre operações de isenção sobre operações internas relativas à circulação de energia elétrica.
Contudo, a previsão desconsidera o fato gerador do ICMS (circulação de mercadorias) e gera instabilidade jurídica para os investimentos. E por um motivo simples: prevê a concessão de isenção quando não há incidência tributária. E só há que se falar em isenção quando há a incidência do tributo, visto que é hipótese de exclusão do crédito tributário (art. 175 do CTN). Na isenção, o crédito tributário surge, mas seu pagamento é dispensado por força de lei.
A incidência do ICMS depende de observância ao disposto no art. 155, II da CF/88, da Lei Complementar nº 87/1996, da legislação dos Estados e, é claro, da realização do fato gerador, isto é, circulação jurídica de mercadorias com transferência onerosa de titularidade. Na GD, a energia gerada pela usina de GD é injetada na rede de distribuição a título de empréstimo gratuito e, posteriormente, compensada com a energia consumida.
Não há, portanto, troca de titularidade, permanecendo a energia gerada como de titularidade do consumidor (que apenas injetou na rede o bem e, consequentemente, o emprestou para a concessionária de distribuição local por força da regulamentação do uso do sistema). Na prática, o consumidor gera a sua própria energia e, por isso, paga apenas a diferença positiva entre a energia efetivamente consumida e a energia injetada na rede.
Daí porque a sentença proferida pela 6ª Vara da Fazenda Pública de Recife é irretocável. Se sequer pode-se falar em incidência do ICMS, são ilegais o Convênio Confaz nº 16/15 e as legislações estaduais que preveem a concessão de isenções, e igualmente ilegais as legislações estaduais que determinam a incidência do ICMS sobre a operação. Nesse cenário, uma possível estratégia para que os titulares de empreendimentos de GD afastem os riscos atrelados ao equívoco gerado pelo Convênio nº 16/15 é o ajuizamento de ações individuais com o objetivo de questionar a legalidade das normas que concedem a isenção e de que seja reconhecida a não incidência do tributo.
Tributação e Desenvolvimento Sustentável
A tributação é uma importante ferramenta no processo de transição para um modelo econômico de baixo carbono, permitindo que as empresas contribuam não apenas para as políticas climáticas de seus países, mas também para os compromissos de redução de gases de efeito estufa (GEE) assumidos no Acordo de Paris. Através da redução da carga tributária, seja por meio de redução de alíquotas ou, até mesmo, da concessão de isenções, o Poder Público é capaz de influenciar escolhas de consumo, induzir comportamentos e desincentivar atividades econômicas poluidoras.
Mas ao conceder benefícios de ICMS de forma não técnica, o Convênio Confaz nº 16/15 reduz os impactos positivos do benefício fiscal concedido, podendo, no limite, repelir investimentos no segmento de GD. Tudo isso porque tal falha indica risco e instabilidade jurídica para os investidores, afinal, além de ter que observar a Lei de Responsabilidade Fiscal, alguns benefícios fiscais poder ser revogados pelo Poder Público.
Isso significa que os Estados que concederam isenção às operações de GD poderão rever seus atos, seja por pressão financeira (cenário de baixa arrecadação dos cofres públicos), seja por pressão política (de outros segmentos do mercado de energia, por exemplo). No atual cenário de pandemia de Covid-19, caracterizado pelos impactos negativos na arrecadação tributária e os desafios que políticos que vem sendo enfrentados pelos Estados-membros, o tema se torna ainda mais sensível. O risco de revisão das isenções concedidas aumenta, e a judicialização se torna uma realidade cada vez mais próxima. E toda essa incerteza poderia ser evitada pela simples observância da legislação tributária.
Fonte: JOTA